terça-feira, maio 22, 2007


Astronauta
Gian Danton

“Astronauta libertado
Minha vida me ultrapassa
Em qualquer rota que eu faça”
(Mutantes e Tom Zé)

Chamava-se Antony. Antes chamara-se Manuel. Antes disso, Robert. Seu primeiro nome fora esquecido por todos e até mesmo – dizia-se – por ele.
Sua loja em Plutão chamava-se Antony’s. Não sou exatamente doido por nomes, mas há certos casos em que torna-se necessário denominar todas as coisas. Portanto, vejo-me na obrigação de dizer que a loja – cujo nome já fornecemos anteriormente – estava situada no continente de Pangeia, no país de Pandora, no distrito de Pan e na localidade de P.
Antony, que antes chamava-se Manuel, e antes disso Robert, vendia cadeados. O negócio, devemos admitir, não ia de vento em popa. E a razão era simples: não havia ladrões em Plutão. Ou pelo menos não em quantidade suficiente para justificar a existência de uma loja de cadeados.
Quando lhe diziam isso, Antony insistia que essa era a argumentação típica das pessoas de visão curta. Dizia também que, à medida em que Plutão se tornasse um centro comercial e industrial, o surgimento de ladrões, larápios e gatunos seria inevitável.
Enquanto esperava os tempos dourados em que Plutão se encheria de gatunos, passava os dias sozinho na loja, acompanhado apenas de um rato verde de nome Pafúncio.
O animalzinho não aprendera a dizer uma única palavra além de “anticonstitucionalisticamente”. Explica-se. Antony – que todos devem se lembrar, já se chamara Manuel e Robert – achara que a melhor maneira de introduzir o bichinho no mundo das palavras era ensinar-lhe uma que fosse bastante difícil. Ora, se ele falar anticonstitucionalisticamente, facilmente falará qualquer outra coisa, pensou.
Enganou-se. Pafúncio se mostrara tão aturdido com o anticonstitucionalisticamente que se recusou terminantemente a aprender qualquer outra coisa. Era de se cogitar também que uma palavra tão grande ocupasse todo o espaço disponível em sua memória. Uma hipótese não comprovada, evidentemente....
Assim, quando via o dono acabrunhado, atacava o anticonstitucionalisticamente, a fim de alegrá-lo. Nem sempre conseguia, embora, às vezes, tivesse de se desviar de cadeados e chaves. Ficava feliz, então, com a disposição de espírito do companheiro.
Antony – ou Manuel, antes disso Robert, mas isso vocês já sabem – vivia há muito tempo. Tempo demais para se lembrar. Havia boatos. Dizia-se que, depois de ter traído um amigo, ele teria sido condenado a viver eternamente.
No começo a maldição parecia uma benção. Antony saiu ileso de Jerusalém quando da repressão romana à revolta dos Zelotes... desdenhou das invasões bárbaras enquanto contava seus cobres. Andou pelas cidades da Europa durante a peste negra, fazendo negócio com pessoas desesperadas. Guerra, fome e doenças jamais o afetaram definitivamente. Talvez de modo indireto: Antony viu todos os amigos morrerem e percebeu que apenas envelhecia, e pouco, enquanto outros que pegara no colo morriam caducos.
Não, não havia nada de realmente bom em viver para sempre. O homem imortal evitava se apegar às pessoas, sabendo que elas morreriam e ele não.
Em todos esses séculos a sorte não o acompanhou. Em períodos distintos ele acumulara riquezas suficientes para comprar toda a América, se ela estivesse à venda. Mas jamais conservara o dinheiro em suas mãos. Num dia era miserável e no outro miserável. Perdera milhões com a crise de 1929. Outros milhões se foram com jogatinas e funcionários desonestos.
Nos últimos tempos, sua única aspiração era morrer. Quando soube do projeto de colonização de Plutão, pensou lá consigo: “E se a maldição valer apenas para este planeta?”.
Assim chegara ao planeta gelado.
Contrariando suas expectativas, depois de dez anos em seu novo lar ele não morrera uma única vez.
Por fim, desistiu também disso e passou a viver exclusivamente para sua loja que, apesar de todos os seus esforços, permanecia sempre deserta.
Antony passava os dias debruçado sobre o balcão de vidro, os pés protegidos por confortáveis pantufas, esperando que entrasse algum freguês. Quando desistia e tirava uma soneca, acordava inevitavelmente com a voz fina de Pafúncio, animando-o:
- Anticonstitucionalisticamente... anticonstitucionalisticamente... anti...

1 comentário:

Lucas Lourenço disse...

Que viagem... Literalmente! Bem legal.