sábado, outubro 13, 2007


Entropia


Entropia. A medida de desorganização do universo. A flecha do tempo, da qual nada pode escapar. Impérios em decadência, a morte de estrelas, os vermes da terra roendo os corpos dos mortos. Entropia, a tendência do universo para o caos, a deterioração, a mistura... o calor se dispersa, a energia se acaba, a informação se perde, num mar de ruídos... Nada pode impedi-la. Ninguém pode pará-la.


Eu estou aqui, com meu membro enfiando em um tubo de borracha, tendo de me concentrar para fazê-lo funcionar. É quando percebo, no meio do barulho geral, um som estranho no radar. Eu guardo meu membro flácido e flutuo até os controles. Leva pouco tempo. O espaço interno da estação é tão pequeno que até mesmo um animal criado em um zoológico se sentiria apertado.
Eu olho na tela e observo um ruído, um amontoado de sinais, que parecem entrar no sistema solar. Um cometa, talvez.
Não há nenhum cometa nesse período.
Tento mexer no computador para que amplie a imagem, mas ele trava. Quase nada funciona como deveria. Não desde que o projeto espacial foi abandonado.
Políticos decidiram que não havia mais nada para ser descoberto no espaço e cortaram as verbas dos programas espaciais.
Mas havia uma estação espacial e nós três, John, Natasha e eu. John era uma americano tolo cuja maior decepção foi quando se acabaram os chicletes. Natasha era uma russa de cabelos vermelhos, alta e de pele branca. Era alegre e bela, mas tinha um ar militar, herança de décadas de totalitarismo stalinista. Gostaria de ter transado com ela.

...

Minha mãe me abraça e chora, a entropia tomando conta de seu rosto. As rugas e estrias lembrando que o fim de tudo é a sepultura, a terra macia e os vermes. Eu a afasto um pouco e lhe dou um beijo. Depois me viro e vou para longe, para a grande nave. Passos desajeitados por causa da roupa de astronauta.
Ela fica lá, quieta, me olhando, enquanto chamas envolvem o engenho metálico e o alçam aos céus, em direção ao desconhecido e ao fim dos tempos.

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O ruído se torna mais distinto, e percebo que são vários pontos, como milhares de cometas penetrando no sistema solar.
Coloco meu protetor de ouvido e preparo minha comida. Comida fria, para não gastar o que resta de oxigênio e de energia na estação.
A barulheira dos equipamentos é infernal. Quando foram inventados, a única preocupação era que funcionassem. Depois perceberam que o barulho poderia afetar psicologicamente os astronautas, e tentaram fazer um silenciador, mas ele fazia ainda mais barulho, e era muito caro. A única saída era fabricar equipamentos mais silenciosos, mas eles nunca foram fabricados, e jamais serão.
Mastigo minha comida sem gosto e me lembro de Natasha. Ela olhou para mim enquanto embarcava no ônibus espacial, e seu olhar revelou intenções nunca ditas. Era como se ela dissesse que havíamos perdido muito tempo. E o tempo jamais volta atrás. A entropia caminha em uma única direção e jamais retorna, a não ser que uma força externa atue sobre o sistema.
Mais um barulho se junta ao matraquear das máquinas: o sinal de uma sirene. Como uma velha chorosa, ela me acompanha, enquanto me levanto e pego o extintor. Depois flutuo pela estação até encontrar o foco do incêndio. As chamas, inimigas mortais, que consomem meu oxigênio, gritam e reclamam enquanto eu as flagelo com um banho de espuma.
Eu queria ir com Natasha, mas só havia lugar para mais dois no ônibus espacial. Tive de acompanhar sua partida da escotilha, rezando para que viessem me pegar logo. Já se passaram dois meses.
Por curiosidade, eu volto para o radar e descubro que não são cometas as formas que se aproximam da terra. É uma forma grande, vindo a velocidade constante, rodeada de pequenos pontos. Como um rei circundado por sua escolta.
Uso o computador para ampliar a imagem e ele finalmente funciona. A imagem que aparece na tela é assustadora: um grande disco de metal, rodeado de pequenas estruturas no formato de besouros.

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A luz incandescente ilumina as formas coloridas de um foguete de Flash Gordon. Eu o seguro em minhas mãos e faço com que cruze o espaço. Intrépido e heróico, do pequeno artefato no formato de bala de rifle parecem irradiar promessas de grandes aventuras.
Eu acompanho o movimento com sons de turbinas que, saídos desarticulados de minha garganta infantil, parecem concorrer com a tosse seca de meu pai. Sentado em uma poltrona de couro marrom, ele tosse, ri e fuma, enquanto assiste seu programa de TV predileto.
Em cinco anos ele estará morto. Câncer de pulmão.

...

Acordo com meus ossos doendo. O cálcio está indo embora deles. Se eu voltar para a Terra, terei sérios problemas. Se eu voltar.
Desprendo as fitas de velcro que me prendem à cama e flutuo até o banheiro. Enfio meu membro no tubo e descarrego tudo que acumulei durante a noite. Fico preocupado quando penso que junto com a urina está indo embora muito do cálcio que preciso. Depois abro a torneira e deixo que a água escorra de meu rosto para o resto do banheiro. Eu não deveria fazer isso.
Também não deveria usar o pouco de energia que resta na nave para esquentar o café, mas o faço. Coloco com cuidado o pó capuccino no copo e o fecho rapidamente. Depois introduzo água no copo através de um tubo para depois colocar no microondas. Quando retiro, está quente e espumante. Sua bolhas de sabor estouram em minha língua, provocando uma sensação agradável. Mas o café esfria antes que eu possa terminar de tomá-lo. O copo térmico deveria mantê-lo quente, mas não faz.
Como biscoitos velhos e vou à cabine de comando verificar o radar. Levo um susto. Os sinais estão ao redor da estação. Vou até a escotilha e observo enquanto a nave mãe passa pela estação, ignorando-me solenemente. Vai direto para a Terra.

...

Em pouco tempo, a nave entra na atmosfera e a perco de vista. Fico imaginando o está acontecendo lá embaixo. Os seres que nos visitam são amigáveis? Quais são seus objetivos?
Tento entrar em contato com a terra, mas o sistema de comunicação está repleto de ruídos.
Passo o resto do dia junto à escotilha, como que hipnotizado.
De repente algo acontece. As luzes das grandes cidades começam a se apagar. Nova York, Cidade do México, Buenos Aires, São Paulo... uma a uma, as grandes metrópoles vão sendo dominadas pelas trevas.
Entropia. A escalada do universo na direção do caos. A ausência de forma. Morte térmica.
Quando a terra gira, as luzes do outro lado nem mesmo se acendem.
Então ocorre. Enormes explosões tomam conta do planeta, como deflagrações atômicas. A Terra está sendo bombardeada? Ou os governantes, num último esforço de sobrevivência, decidiram usar armas nucleares?
Segue-se um período enervante. Nada mais ocorre.
Não recebo comunicações da Terra há quanto tempo? Dois? Três dias? Estou preso aqui em cima e não sei o que está acontecendo lá embaixo. Se ainda há humanos em nosso planeta, dificilmente virão me buscar.
Penso em Natasha. No tempo perdido. Gostaria que ela ainda estivesse aqui. Teria sido menos doloroso de suportar.
Eu poderia usar o resto de energia da estação para tentar entrar na atmosfera. Mas, além dos riscos, o que eu encontraria? O que estaria esperando por mim?
Talvez tenha chegado o momento dos humanos, como chegou o dos dinossauros há milhões de anos.
Entropia... a flecha do tempo... ordem transformando-se em caos... substâncias misturando-se inexoravelmente, civilizações desaparecendo... entropia.

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